Fotografias dos recortes dos dois jornais que mencionavam a notícia.
Não foram poucas as vezes que tive de recomeçar, mas a mais dolorosa, foi no quente mês de Agosto de 1998. Estava a passar o fim de semana na Costa da Caparica com familiares e o meu namorado, de quem estava noiva. Na noite de sábado, depois do jantar, os mais velhos sentaram-se no terraço a jogar às cartas. Eu, estava cansada e acabei por adormecer.
Era madrugada quando o meu namorado me acordou. Ainda hoje me lembro do que vi nos olhos dele - o medo. Queria dar-me uma má notícia, mas queria encontrar a melhor forma do o fazer, no entanto, não há uma boa forma de dar uma má notícia, esta é o que é, má!
A minha casa estava a arder. O que se sabia era pouco, apenas algumas palavras que lhe balbuciaram ao telefone, articuladas por alguém ainda incrédulo do que estava a acontecer. Na minha casa, local do incêndio, estava a minha avó paterna, o meu tio e a minha gata. O meu primeiro pensamento foi de que estas vidas estariam em perigo e pedi ao M. que me levasse até Lisboa. Pedi-lhe com os olhos cheios de lágrimas e o coração na boca. Voou pela Ponte 25 de Abril. O carro parecia rasgar a estrada, sem que dali houvesse qualquer tipo de atrito, que nos atrasasse um minuto que fosse.
Cheguei a minha rua e o aparato era hollywodesco. O prédio já não estava em chamas, mas havia mangueiras e água por todo o lado. Em cinco andares, os três últimos estavam completamente destruídos. O meu era o 4º e o fogo começara no 3º. A minha avó, felizmente, tinha sido socorrida pelo meu tio, que com uma toalha molhada, a tinha arrastado daquele inferno. Salvaram-se os dois.
No meio de toda aquela confusão, os bombeiros com a cara cheia de fuligem, as pessoas na rua de pijama e camisa de noite, o choro dos mais receosos, o cheiro...o cheiro era insuportável, tudo parecia caótico. Insisti com o comandante dos Bombeiros para subir, não via a minha gata e sabia que ela não iria ceder a ninguém de tão rebelde que era. Se estivesse viva, queria ser eu a ir busca-la. Demorou até conseguir convencer alguém. Chorei e pedi por favor, mas sempre lúcida o suficiente para perceber que o que estava a pedir era um perigo. O edifício estava em rescaldo e os bombeiros ainda não tinham desistido daquela missão.
Um deles deu-me a mão. Subimos cada degrau como se a nossa vida dependesse disso. Meti a mão na parede para me equilibrar e senti o calor que parecia devorar o interior do que era a barreira entre o cá e o lá. O cheiro era insuportável. Entre o estalido da madeira queimada, que estava agora ensopada em água, e o cheiro, estava apenas privada de um dos meus sentidos, a visão. Não se via nada, pois não havia corrente eléctrica e a lanterna do bombeiro parecia ser tão fina como uma agulha no palheiro.
Cheguei ao meu andar com as pernas a tremer. Não queria acreditar, que tudo o que materialmente representada a minha vida, estava agora reduzido a pó. O meu quarto havia desaparecido e com ele foram as fotografias, os livros, as lembranças. Ficaram apenas as memórias. No meio dos escombros, em cima de uma pilha de madeira que era, num passado recente, a minha cómoda, estava uma caixa pequena derretida. Percebi que tinham resistido ao fogo, as nossas alianças. De resto, não sobrou mais nada. Só para terem ideia, o meu espólio era uma pequena mochila que tinha levado para passar o fim de semana. Um vestido, um bikini e uma toalha de praia, uma t-shirt e uns calções, a carteira com o meus documentos. Tudo o resto foi-se, assim, numa noite.
O incêndio deu-se no dia 08 de Agosto de 1998 e eu casei a 09 de Setembro desse mesmo ano. Hoje, ao relembrar o passado, percebo o porquê do meu olhar triste nas fotografias de casamento. Para mim, a desgraça era demasiado recente. Recomeçava agora uma nova vida, mas com a memória de uma noite que tento esquecer todos os dias.