Era madrugada quando o meu namorado me acordou. Ainda hoje me lembro do que vi nos olhos dele - o medo. Queria dar-me uma má notícia, mas queria encontrar a melhor forma do o fazer, no entanto, não há uma boa forma de dar uma má notícia, esta é o que é, má!
A minha casa estava a arder. O que se sabia era pouco, apenas algumas palavras que lhe balbuciaram ao telefone, articuladas por alguém ainda incrédulo do que estava a acontecer. Na minha casa, local do incêndio, estava a minha avó paterna, o meu tio e a minha gata. O meu primeiro pensamento foi de que estas vidas estariam em perigo e pedi ao M. que me levasse até Lisboa. Pedi-lhe com os olhos cheios de lágrimas e o coração na boca. Voou pela Ponte 25 de Abril. O carro parecia rasgar a estrada, sem que dali houvesse qualquer tipo de atrito, que nos atrasasse um minuto que fosse.
Cheguei a minha rua e o aparato era hollywodesco. O prédio já não estava em chamas, mas havia mangueiras e água por todo o lado. Em cinco andares, os três últimos estavam completamente destruídos. O meu era o 4º e o fogo começara no 3º. A minha avó, felizmente, tinha sido socorrida pelo meu tio, que com uma toalha molhada, a tinha arrastado daquele inferno. Salvaram-se os dois.
No meio de toda aquela confusão, os bombeiros com a cara cheia de fuligem, as pessoas na rua de pijama e camisa de noite, o choro dos mais receosos, o cheiro...o cheiro era insuportável, tudo parecia caótico. Insisti com o comandante dos Bombeiros para subir, não via a minha gata e sabia que ela não iria ceder a ninguém de tão rebelde que era. Se estivesse viva, queria ser eu a ir busca-la. Demorou até conseguir convencer alguém. Chorei e pedi por favor, mas sempre lúcida o suficiente para perceber que o que estava a pedir era um perigo. O edifício estava em rescaldo e os bombeiros ainda não tinham desistido daquela missão.
Um deles deu-me a mão. Subimos cada degrau como se a nossa vida dependesse disso. Meti a mão na parede para me equilibrar e senti o calor que parecia devorar o interior do que era a barreira entre o cá e o lá. O cheiro era insuportável. Entre o estalido da madeira queimada, que estava agora ensopada em água, e o cheiro, estava apenas privada de um dos meus sentidos, a visão. Não se via nada, pois não havia corrente eléctrica e a lanterna do bombeiro parecia ser tão fina como uma agulha no palheiro.
Cheguei ao meu andar com as pernas a tremer. Não queria acreditar, que tudo o que materialmente representada a minha vida, estava agora reduzido a pó. O meu quarto havia desaparecido e com ele foram as fotografias, os livros, as lembranças. Ficaram apenas as memórias. No meio dos escombros, em cima de uma pilha de madeira que era, num passado recente, a minha cómoda, estava uma caixa pequena derretida. Percebi que tinham resistido ao fogo, as nossas alianças. De resto, não sobrou mais nada. Só para terem ideia, o meu espólio era uma pequena mochila que tinha levado para passar o fim de semana. Um vestido, um bikini e uma toalha de praia, uma t-shirt e uns calções, a carteira com o meus documentos. Tudo o resto foi-se, assim, numa noite.
O incêndio deu-se no dia 08 de Agosto de 1998 e eu casei a 09 de Setembro desse mesmo ano. Hoje, ao relembrar o passado, percebo o porquê do meu olhar triste nas fotografias de casamento. Para mim, a desgraça era demasiado recente. Recomeçava agora uma nova vida, mas com a memória de uma noite que tento esquecer todos os dias.
Para Fábrica de Letras
Muito, muito triste! Nem me imagino numa situação dessas! É daquelas situações que nunca mais saem da nossa memória e até dos nossos olhos.
ResponderEliminar(Nem quero saber o que aconteceu à tua gatinha...)
Beijos
Infelizmente ficou-se. Não foi possível resgata-la, acabou por inalar muito fumo :(
EliminarNem quero imaginar a nuvem que pairava sobre o dia do teu casamento... lamento muito.
ResponderEliminarMuita gente vê o álbum e comenta: Nunca vi uma noiva com um olhar tão triste.
EliminarDeve ter sido tão difícil! Nem consigo imaginar... E o casamento tão perto dessa tragédia deve ter sido um esforço enorme. É natural o teu olhar nas fotografias.
ResponderEliminarO casamento já estava marcado há um ano e nada nos fazia prever esta tragédia.
EliminarÉ horrível perder tudo, imagino o pânico, o terror e o sofrimento dessa noite! Mas pensamento positivo a tua avó e o teu tio saíram ilesos fisicamente. Enfim, não há palavras que te posam reconfortar. Desculpa a pergunta mas, e a tua gata? Ficou bem?
ResponderEliminarInfelizmente não foi possível resgata-la, acabou por inalar muito fumo :(
EliminarNem sei como começar...
ResponderEliminarEu penso que quando vemos a nossa casa a arder é como vermos alguém da nossa família a morrer. Deve custar imenso, tanto que nem consigo imaginar. Vão as nossas roupas, a nosso ninho, os nosso livros, os nossos recantos, vai parte da nossa biografia e identidade. Vai o nosso casulo que com muito esforço e amor fomos construindo.
Nos meus tempos de faculdade, um colega desapareceu da nossa vista durante meses. Pensávamos que tinha desistido do curso, mas voltou um ano depois. Ele vivia em Castelo Branco e na véspera de Natal a casa dele ardeu. Não sei quais foram as circunstancias mas ano passado quando ele me contou isso fiquei sem palavras. Poderia imaginar tantas coisas menos aquilo. Ainda hoje ele detesta o Natal por todo o infortúnio à volta daquele dia e daquela situação.
Admiro-te muitas coisas e uma delas é falares com naturalidade e até com alguma crueza (sem enfeites) sobre alguns assuntos que muitas pessoas talvez nunca falariam. És uma mulher corajosa e que já se familiarizou com os recomeços. Sabe da vida quem passa por estes infortúnios. Tu sabes da vida.
Beijinho
Obrigado pelas tuas palavras :)
EliminarUm beijo e um martini.
Não fazia ideia que tinhas algo semelhante a ensombrar o teu passado. Remexer esse tipo de tragédia não deve ser nada fácil. E de certeza que a emoção acompanhou-te enquanto escrevias este post. Mas é um facto que está no passado e, por isso, há que seguir sempre em frente. ;)
ResponderEliminarBjos
Sim, embora não consiga esquecer o momento, sei que faz parte do meu passado.
EliminarEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarQue história, que vida! Não tem como não se emocionar. Impressionante a tua luta e bravura e o que reconstruístes de vida com a Bia, és guerreira.
ResponderEliminarBeijos de cá.
*reeditei para corrigir a grafia.
Obrigado pelas tuas palavras Carolina, tens estado sempre por perto.
EliminarUm beijinho de cá ;)
Mas que horror, eu nem consigo imaginar o que deve ser perder tudo dessa maneira...E a gatinha sobreviveu? :S
ResponderEliminarBeijinho*
Não :( Inalou muito fumo...
EliminarDeve ter sido horrível, e a gatinha salvou-se?
ResponderEliminarInfelizmente não :(
Eliminar...
ResponderEliminarMeu Deus! Acho que me lembro desse incêndio...foi o da Av. da Liberdade?
ResponderEliminarLamento imenso...
Não, foi mesmo na Baixa.
EliminarJá não me lembrava que o incêndio tinha sido apenas 4 dias apôs o teu aniversário!Eu lembro-me perfeitamente de ter acordado com a a noticia dada de uma maneira muito vaga e de ter ficado horas sem saber o que fazer....na altura não havia telemóvel!!
ResponderEliminarMas olha já passou, já está superado, e isso é o que interessa!
Beijinhos da chinchilla (que já está melhor da constipação) ;)
Como poderias ter outro olhar, com uma situação dessas tão recente? E como deve ser difícil recordar esse momento...
ResponderEliminarUm beijo
Uma história destas partilhada no final de um Verão tão trágico de incêndios comove duplamente...
ResponderEliminarO fogo é cruel demais.
ResponderEliminarDevora, consome, destrói mas aquece e ilumina quando se nos apresenta como uma parte de si. Uma pequena chama que pode fazer a diferença.
É comovente a tua história e tal como uma pequena chama crescente, a vontade e a força de superar as perdas são a alavanca para todo o recomeço.
Bj**